quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A experivivência de Quintana (Só meu, de Mário Quintana)


Resultado de imagem para só meu mario quintana






     "Nunca escrevi uma vírgula que não fosse confissão" - essa frase de Mário Quintana exprime bem o "espírito" deste livro que, embora destinado às crianças, deve agradar aos leitores de todas as idades. E o motivo é um só: mais do que poemas criados para exprimir, por meio da sensibilidade estética, uma realidade exterior ao poeta, eles exprimem sua vida interior, suas experiências mais introspectivas, sem prejuízo do contexto em que fatalmente se inserem.
     São poemas da experivivência!
    Poemas da intimidade, mas uma intimidade compartilhada, traduzida como peças líricas quase ingênuas, não fosse a lúcida consciência de mundo que deles emanam... E esse mundo que, como sugere o título do livro, era para ser só do poeta, passa a pertencer a todos aqueles que, como Quintana, sabem ler a realidade com os olhos da sensibilidade.
      No livro encontramos versos com e sem rima, já que o que se valoriza é a melodia e o ritmo frásico. Além desse aspecto de natureza formal, destaca-se um tratamento peculiar do conteúdo, em especial algumas transgressões à lógica racional ("O retrato na parede / Fica olhando para mim"), artifícios estéticos que dão o tom lúdico e criativo dos poemas.
     Nesse sentido, pode-se dizer que Quintana – em particular neste delicado Só meu – dispensa rebuscamentos linguísticos e opta pelo imaginário poético, não hesitando em confessar seus mais íntimos "segredos", como nesse sensível “O auto-retrato”:

“No retrato que me faço
- traço a traço –
Ás vezes me pinto nuvem
Às vezes me pinto árvore...” (p. 11)

       Como sugerimos acima, embora o livro tenha sido escrito para o leitor-mirim, certamente agrada também à sensibilidade - e à maturidade! - dos leitores adultos. Mas a própria ideia de que foi escrito para criança é relativa, uma vez que os poemas que compõem seu livro foram retirados de outras obras de sua autoria, já publicadas anteriormente. Veja-se, a título de exemplo, esse contundente e “filosófico” poema, intitulado “Tão lenta e serena e bela”:

“A vaca, se cantasse,
Que cantaria?
Nada de óperas, que ela não é dessas, não!
Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,
Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!
Cantaria o cheiro dos trevos machucados.” (p. 15)

       Decerto, analisando-o em sua substância “ideológica”, parece-nos muito mais apropriado a um leitor adulto do que a uma criança... Do mesmo modo, quanto não há de profundidade “existencial” nesse profundo poema (“Sempre”) composto de apenas um dístico:

“Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.
Só o que está perdido é nosso para sempre” (p. 21).

         Com este encantador Só meu Mário Quintana confirma sua condição de um dos poetas mais sensíveis e profundos de toda nossa recente literatura!

Referências
QUINTANA, Mário. Só meu. São Paulo, Global, 2007.
Resultado de imagem para mario quintana
Foto de Dulce Helfer

domingo, 12 de março de 2017

As profissões do sonho (Profissonhos, de Leo Cunha)




Resultado de imagem para leo cunha profissonhos



                     O que você quer ser quando crescer? Eis aí uma pergunta que todo mundo já ouviu alguma vez na vida, sobretudo quando ainda se é criança. E é exatamente essa pergunta o ponto de partida de Leo Cunha nesse criativo livros de poesias infantis, verdadeiro guia poético para a "escolha" da profissão futura pelos leitores-mirins...
            Com efeito, em Profissonhos, Leo Cunha (2012) parece querer levar ao limite da expressão literária a brincadeira com o imaginário infantil ligado às profissões do sonho de cada criança, empregando, para tanto, não apenas o jogo com as palavras - já que confere a elas um sentido para além de seu valor referencial -, mas também o jogo com as ideias, o que funciona como uma forma de despadronização de um modo de pensar pautado no senso comum e nas ideias pré-concebidas. A ilustração objetiva, quase minimalista, de Gilles Eduar - com seus animais exercendo as mais diferentes profissões! - complementa essa leitura positiva da obra...
            Dando densidade às imagens, o autor constrói um universo em que a surpresa torna-se o Leitmotiv de seus poemas, atingindo rara unidade poética. Isso é facilmente verificado em alguns de suas peças dotadas de rara sensibilidade lírica, o que torna sua literatura um conjunto inesperado de imagens delicadas, como nesse singelo "Bailarina":

"A façanha
de uma ave
que ensaia mil vezes
o voo.

O fascínio
de uma ave
que repete mil voos
diferentes." (p. 13)

            O jogo com palavras parecidas (façanha/fascínio) e com ideias que se contradizem (ensaiar mil vezes o voo para repeti-lo mil vezes diferente!) fazem de sua poesia um despertar contínuo para a surpresa estética. Aliás, a utilização, num mesmo poema, de palavras que possuem uma correlação fônica (façanha/fascínio, bula/bulir, tropeça/trapaça/trapézio) é recurso comum em sua produção poética, tornando-se um dos artifícios literários mais empregados pelo autor. Outro artifício comum é, ainda no âmbito dos vocábulos, a utilização de palavras que fazem parte de um mesmo étimo (olho, olha, olhando), criando assim outros tantos efeitos criativos, muitas vezes aliados a neologismos, como em "Inventor":

"Suas crias
sopram a poeira
do conhecido.
Inventos? Não,
inventanias.

Suas misturas
batem as asas
da imaginação.
Inventos? Não,
inventuras." (p. 21)

            Há ainda outros artifícios desse verdadeiro artesão das palavras e das imagens, agora no âmbito semântico, resultando numa espécie manipulação dos sentidos e significados de palavras e expressões, por meio de inversões e contrastes, como em "Fotógrafo":

"Alguns
têm o olho parado
no tempo.

Alguns
têm o tempo parado
no olho." (p. 20)


            Fazendo parte de uma ilustre tradição literária, que tem em suas fileiras nomes como os de Cecília Meireles e Sidônio Muralha (alguns de seus poemas são francamente inspirados em peças desses dois autores), Leo Cunha traz para o leitor a experiência de um cotidiano carregado de sensibilidade... e o que começa sendo profissão termina sendo sonho: profissonho.
            Afinal, como ele diz em seu primeiro poema, diante da pergunta  - O que você vai ser quando crescer:

"Vai ser o que sonhar..." (p. 10).

Referências
CUNHA, Leo. Profissonhos. Um guia poético. Rio de Janeiro, Planeta, 2012.

Resultado de imagem para Leo Cunha poemas